Porque defendo o Fundeb!
Sou reconhecido às oportunidades que a escola pública me proporcionou; sem ela, tudo na trajetória pessoal teria sido muito diferente.
Minha formação na educação básica foi em duas instituições públicas, ambas muito boas, sobretudo considerando o contexto de limitações naquela década de 1970. Mas, precisando trabalhar desde cedo, a alternativa encontrada foi o ensino superior na universidade privada, igualmente de qualidade. E depois do curso jurídico, também busquei a formação de professor.
Aliás, nestes dias de inverno nos Pampas, revivo as manhãs e noites gélidas da infância e da adolescência, inclusive nos alojamentos da escola em que nós, centenas de internos, vivíamos o “sonho moço” de um futuro melhor. Sonho que meus pais, precariamente alfabetizados, sonharam para sua numerosa prole, contando basicamente só com o que a educação poderia oferecer. Ele aprendera boa parte das poucas letras nos quartéis do Exército, antes de embarcar como soldado da Força Expedicionária Brasileira, em 1944. Ela, junto ao próprio pai, um abnegado professor com escassa escolarização formal que, na primeira metade do século passado, se dedicava a ensinar filhos e netos de imigrantes italianos, recebendo por isso singelas contrapartidas, custeadas, não raro, por famílias tão pobres quanto.
Assim, aprendi, ouvindo, olhando e sentindo o significado da escola. Ao mesmo tempo, se for considerada a afirmação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de que o tempo médio de mobilidade social de um brasileiro das camadas menos favorecidas para atingir a média da classe média nacional é de 9 gerações, então terei sido parte de assombrosa exceção. E esse cenário, definitivamente, não pode ser admitido.
Por isso, humildemente, tenho procurado retribuir as oportunidades que tive e, buscando ir um pouco além das responsabilidades formais do cargo que ocupo, ajudar para que todos também a tenham, com qualidade e dignidade.
Pelas mais diversas razões – da necessidade de ingressar no mercado de trabalho até o desinteresse pelo ambiente escolar – vi muitos ficando pelo caminho, abandonando a sala de aula e fazendo crescer os inúmeros exemplos das distâncias que marcam a realidade dos brasileiros e o extraordinário contingente de analfabetos funcionais.
Há quase 39 anos no serviço público, 10 deles trabalhando em Municípios gaúchos e os demais no Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, fui aprendendo a valorizar a importância de se assegurar os recursos necessários ao financiamento das políticas públicas e, ao mesmo tempo, o quão determinante é para a sua eficiência, eficácia e efetividade, a gestão de qualidade e a boa governança.
Já atuava no controle externo quando a Emenda Constitucional n° 14, de 1996, criou o Fundef. Pude acompanhar seu impacto positivo na universalização do ensino fundamental, um objetivo tão elementar, mas que ainda não havia sido alcançado. E o Fundeb veio dar nova dimensão a esse processo de inclusão, com a redistribuição de recursos considerando toda a educação básica e assegurando um mínimo de condições para as respectivas redes.
Nesse quadro, seria verdadeiramente um retrocesso grave deixar esse mecanismo redistributivo fenecer e não se construir nada minimamente similar. Apenas numa dimensão quantitativa: hoje são cerca de 40 milhões de crianças, adolescentes e jovens matriculados nas escolas públicas, da educação infantil ao ensino médio.
Mas o trabalho parlamentar, agora conduzido pelo Senado brasileiro, pode viabilizar um Fundeb melhor concebido, permanente no seio da Constituição e alavancado com o aporte de mais recursos da União (que, como sabemos, tem o dever de prestar assistência técnica e financeira a Estados e Municípios).
Estamos acostumados a ouvir que o Fundeb é o principal mecanismo para diminuir as grandes desigualdades no financiamento da educação básica do pais. Porém, mesmo no modelo atual, ainda existe uma grande diferença entre os recursos por aluno investidos pelos Municípios mais ricos e por aqueles mais carentes. Esse fosso, que hoje já supera os 70%, poderia ser quadruplicado se o Fundeb acabasse; quanto mais pobre a população local, maior seria o prejuízo.
A PEC 15/2015 tramitou por mais de 5 anos na Câmara dos Deputados, tendo sido amplamente debatida ao longo do período, recebendo inúmeras contribuições de agentes públicos, profissionais da educação, pesquisadores, sociedade e Tribunais de Contas, através do Comitê da Educação do Instituto Rui Barbosa (sabendo-se que os órgãos de controle, por conviverem diretamente com os diferentes aspectos da gestão, têm muito a contribuir). Consensos foram construídos nesse tempo. E são robustos os avanços do novo Fundeb, que agora deve ser votado pelo Senado:
- destinação de pelo menos 70% dos valores para a remuneração dos profissionais da educação básica;
- aperfeiçoamento do modelo atual em vários pontos, como é o caso da ampliação gradual da participação da União, que deverá passar dos atuais 10% para 23%. Com isso, o critério de distribuição também vai mudar: cidades mais pobres, independente da localização, poderão receber parte desses recursos adicionais, que hoje vão para apenas 9 Estados (mas isso também fica preservado, a fim de não se gerar perdas aos mesmos). Assim, estima-se um aumento superior a 50% no número de redes beneficiadas;
- uma parcela desse incremento deverá ser destinada à educação infantil; outra, a valorizar o desempenho das redes, conforme indicadores educacionais ligados à melhoria da aprendizagem e à redução das desigualdades;
- o Custo-Aluno Qualidade (CAQ) entra como referencial determinante para a apuração dos investimentos a serem realizados na educação básica;
- ainda pela PEC 15, a distribuição de parte da quota do ICMS aos Municípios deverá considerar indicadores que levem à melhoria na educação básica, numa perspectiva virtuosa, já aplicada ou em debate em alguns Estados;
- o texto constitucional vem explicitar aspecto relevante no financiamento da educação: despesas com aposentadorias e pensões são gastos previdenciários e, portanto, não poderão ser consideradas como de manutenção e desenvolvimento do ensino.
Além da votação final da PEC, é preciso lembrar que o Fundeb vai exigir uma regulamentação com cálculos complexos, considerando que são muitos critérios a serem ponderados na definição dos repasses a cada rede. E tal processo demandará um tempo que já se torna escasso, haja vista que o Fundo atual, como se sabe, tem sua vigência encerrando em 2020.
Uma vez vencida a tramitação legislativa, o grande desafio será assegurar que os recursos sejam aplicados exclusiva e integralmente nos seus meritórios objetivos, num ambiente de total transparência. Desse modo, a par da esperada responsabilidade dos agentes públicos na administração dos valores, é imprescindível o acompanhamento e a fiscalização por parte dos órgãos de controle, interno e externo, sem se prescindir da atuação dos conselhos e do controle social. Este, inclusive, por sua proximidade, tem a condição de ser muito efetivo, sobretudo na prevenção aos desvios de finalidade.
Em arremate: o Fundeb é essencial para a educação básica com igualdade e equidade para todos os brasileiros. E a oportunidade real para concretizarmos a absoluta prioridade à criança, ao jovem e ao adolescente (art. 227 da Constituição). Afinal, sem recursos e boa gestão, tudo o mais se limitará à eventual boa intenção. Mas, só com ela, nada vai mudar.
Porto Alegre, 23 de agosto de 2020.
Cezar Miola,
Conselheiro do TCE-RS e
presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa.